domingo, 20 de dezembro de 2009

A GÊNESIS DO SER

A GÊNESIS DO SER
Valdemilson Liberato
Os criacionistas entendem que Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança, criando-o a partir do “pó da terra”, como narra o livro de Gênesis, enquanto os evolucionista pensam no homem surgido do “pó das estrelas”, pelo acaso, oriundo do Big Bang. No entanto, a teoria evolucionista não é de toda descartada pela Igreja Católica, ela é mais que uma hipótese, desde que nos moldes propostos por ela; não da maneira darwiniana, sem Deus, conduzida pelo acaso.
A Igreja aceita a possibilidade da evolução conduzida por Deus, aliás, como muitos físicos modernos estão mostrando. Criação e evolução não se opõem radicalmente entre si, desde que se admita que Deus criou a matéria inicial, dando-lhe as leis de sua evolução, e cria até hoje toda alma humana, que é espiritual, estando todas as coisas sob o Seu controle. Ela até admite que o corpo do homem, sendo matéria, pode ter vindo de matéria viva preexistente – “Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.” (Gn. 2,7) -, porém nunca dos macacos hoje existentes, pois estes já são muito especializados e não evoluem mais.
Contudo, não é minha intenção aqui, propor uma discussão sobre qual seria o conceito “mais correto” das origens do homem, nem tão pouco salientar algum tipo de conceito teológico ou científico a esse respeito, pelo contrário, o que pretendo é sugerir uma possibilidade de pensar quando do surgimento da duplicidade - ente e ser, para que, assim sendo, possamos vislumbrar essa possibilidade, ou seja, sobre como se deu esse processo do homem-no-mundo, o “ser-aí”, o dasein, que distingui-se dos outros entes por não se tratar de um ente simplesmente dado, mas que reconhece a sua condição de ser e que constitui-se tanto como singularidade quanto como a impessoalidade de todo mundo.
Permitam-me, assim, retirar das Escrituras Sagradas, subsídios na construção dessas possibilidades do surgimento e desenvolvimento desse ser.
O livro de Gênesis, como dito anteriormente, revela-nos, que Deus ao criar o homem o fez a Sua imagem e semelhança. Essa relação com Deus além de distinguir o homem dos animais, também implica dizer que, dentre outras concepções teológicas, o homem foi provido de alguns atributos divinos que o diferencia de todas as outras criaturas: inteligência, volição, sentimento, livre arbítrio, são alguns desses atributos que, na sua essência, torna o homem um ser diferenciado. Contudo, esses atributos que o torna um “ser por excelência”, também o delega uma primeira angustiante responsabilidade na sua existência, ou seja, o sentimento que ocorre frente à possibilidade, caracterizando a sua situação de liberdade, pois lhe foi dado à capacidade de escolha, e assim sendo, tornara-se responsável pelas conseqüências de todas as escolhas que fizer durante a sua existência.
Também é importante salientar que a Bíblia nos revela que à semelhança do Ser eterno, o homem foi criado para ser infinito, e que todas as orientações foram-lhe transmitidas pelo próprio Deus para que ele assim permanecesse – “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer” (Gn. 2.16,17). Contudo, como sendo o homem um ser capaz de escolhas, de ter a “liberdade para o pecado”, sucumbiu diante de sua primeira escolha, ou seja, entre obedecer e desobedecer a Deus, ele optou por desobedecer, e como toda escolha remete a uma conseqüência esta foi a mais terrível: a escolha pelo pecado resultou na sua finitude.
Diante do pecado original, Adão traz a consciência da culpabilidade, sofrimento e angústia gerada pela perda da sua identidade pela duplicidade paradoxal do seu “eu”, agora, infinito e finito.
Na escolha pelo “fruto proibido” o homem, segundo a Bíblia, transgrediu conscientemente um preceito de Deus, reivindicando a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal e assim sendo arcar com as conseqüências de suas escolhas – o ser-para-a-morte.
Podemos, deste modo, pensar no desdobramento do ser lançado no mundo, agora já não mais o homem no paraíso, o ser completo - Deus-homem, dentro dos cuidados e limites de uma verdadeira Teocracia, mas, agora, permitindo-se ser, aquele que está exposto, separado do seu Criador, aberto, vulnerável a angústia de sua finitude, sujeito à impessoalidade e conseqüentemente com o convívio da perda de sua identidade.
Acreditamos que a angústia surge, exatamente, frente à liberdade diante das possibilidades, a esse real estabelecido e ao futuro que coloca o Dasein em contato com o seu ser mais próprio, embora, ao mesmo tempo, tenta desesperadamente encobrir.
“Ser-aí” é aquilo que é característico do homem. Só o homem, na concepção heideggeriana, existe como um “ser-aí” capaz de revelar-se, sem se esgotar ou identificar com ele. O homem teria a possibilidade de trazê-lo à luz e apresentar-se enquanto tal, ou seja, sendo um ser que se mostra no tempo. Torna-se muito importante, também, salientar que por ser dotado de linguagem, o homem tem a condição necessária para a manifestação do próprio ser no tempo, não como objeto tradicional das ciências e filosofia ocidental, mas na forma de uma subjetividade entrelaçada, na qual sujeito e objeto se mesclam em um pensamento originário.
Heidegger supõe que o homem possa pensar a verdade do ser a partir da existência, isto é, daquilo que se apresenta como “ser-aí”, a própria essência humana. Todavia, para experimentar sua essência e morada é preciso que se retome as questões originárias da história do ser: a sua “pátria”, que na sua concepção não tem uma conotação nacionalista, mas apenas ontológica-historial de um momento no qual o homem esteve mais próximo do Ser. O esquecimento do Ser é o resultado desse distanciamento do homem de sua “pátria”.
Embora a metafísica heideggeriana revele um forte apelo à tradição clássica , sugerindo, diante desse distanciamento, à volta ao pensamento original helênico, penso não ser de muita ousadia sugerir à possibilidade dessa “pátria” se encontrar um pouco antes desse pensamento, talvez, quem sabe, na origem de tal pensamento, ou seja, no pensamento pré-helênico, provavelmente naquele que descrevi anteriormente sobre a gênesis do ser, já que se torna muito difícil examinar qualquer origem filosófica senão juntamente com os conceitos religiosos de cujo contexto fazem parte.
Seguindo essa possibilidade existencial originária, remeto-me ao pensamento de Kierkegaard onde, segundo ele, crer em Deus era um salto de fé, um comprometimento com o absurdo. Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver esta fé. A fé é impossível se houver provas e certezas. Sem riscos não há fé, é uma impossibilidade. A fé e a razão são oposições mutuamente exclusivas.
Por este víeis então, podemos supor que este homem em liberdade na opção da escolha que o caracteriza, se ausentou do que lhe era mais próprio, o Ser, e passou simplesmente a existir. Desvinculando-se do Ser-absoluto e gradativamente desapercebendo-se de sua singularidade, entifica-se por sua escolha no impessoal.
Torna-se importante lembrar que foi exatamente pela possibilidade da sugestão do impessoal na figura da serpente do jardim do Éden que o homem sucumbiu na sua primeira escolha – a transgressão:
“... “Então Deus disse: Vós não podeis comer do fruto das árvores do jardim?”A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das arvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós se- reis como deuses, versado no bem e no mal.” (Gn. 3.1-5)
A serpente serve aqui de mascara para designar o que é impessoal, inimigo do que é mais próprio do Ser – homem e Deus. O conhecimento do bem e do mal, não se trata nem da onisciência, nem do discernimento moral, Mas é a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal, e de agir conseqüentemente conforme a reivindicação desta autonomia moral pelo qual o homem nega a soberania de Deus em sua vida. Torna-se assim a soberania da alma sobre o espírito.
Nesta condição de afastamento do Ser, “expulso do paraíso”, o homem livre em suas escolhas, mas velado em sua singularidade, torna-se um ser lançado no mundo, aberto a uma existência pautada no devir e se constitui como “ser-no-mundo”, o Dasein, irredutível a qualquer forma de objetivação, mas, quase sempre, sucumbido no modo existencial da impessoalidade. Heidegger vai nomear de autenticidade a possibilidade da apropriação de nossas singularidade, que ocorre quando nos damos conta da nossa facticidade e de nossa condição de abertura. Contudo, ela nunca vai se dar por completo, já que não há a como se livrar totalmente do impessoal, pois embora na medida que temos consciência de estarmos em aberto e percebemos a ilusão á qual nos damos a conhecer como identidade, podemos nos apropriar de outros modos de se dar, estabelecendo novas identidades e modo de lidar com o outro, porem, contudo, continuando impregnado de inautenticidade.
Para Kierkegaard estar inconsciente ou não aceitar de que se tem um Eu, ou seja, o ser um ser espiritual, ou até mesmo na incapacidade de querer ser, é não compreender quem se é de fato. Pois, para ele, o homem é uma síntese de finito e infinito. De sua relação consigo mesma e com Deus. E é exatamente da discordância interna dessa síntese consigo própria e em relação a Deus, que surge o “desespero humano”. (Kierkegaard, 2003)
Para o apóstolo Paulo (I Co.15,45) como para a tradição bíblica a psyché (alma) é o princípio vital que anima o corpo humano, ou seja, a vida natural. Esta, criada pela junção do espírito (pneuma) ao corpo, formando assim o “zoé”, o “eu para Deus”, o eu infinito, o “eu teológico” que em sua origem, passa a ser a sede da vida moral e dos sentimentos. Contudo, como resultado da desobediência à Deus, afastado do que lhe e mais próprio, tornou-se o eu derivado do pecado. O “eu humano”, “psyché”, sede de todas as paixões humanas e sucumbido aos anseios do mundo.
No princípio, pela doutrina do pecado original, Paulo, baseado nas Escrituras, descreve que o pecado passou a habitar o homem, e assim, a morte, conseqüência do pecado, entrou no mundo a partir da falta de Adão. O pecado separou o homem de Deus. Esta separação é a morte espiritual da qual a morte física é apenas um sinal. Nasce assim o “eu-para-morte”. A psyché, desta maneira, torna-se a sede do eu perdido, o eu inaltêntico. O eu do ser-para-a-morte.

Um comentário:

  1. Temor e Tremor de Kierkegaard é a Obra mais consistente e considerada a mais profunda do autor, onde a história de Abraão empenhado em sacrificar seu filho Isaac para obedecer à ordem de Deus é comentada. Vale a pena depois de lida essa reflexão do Prof Liberato sentar-se com calma e ler a obra do filósfo.

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