quarta-feira, 23 de junho de 2010

O ABSURDO DA EXISTÊNCIA

   O ABSURDO DA EXISTÊNCIA
Valdemilson Liberato
    Ao lermos o livro “O Estrangeiro”, de Albert Camuns, uma das sensações que parece nos invadir a alma é uma espécie de mal-estar, pelo estranhamento diante do “realismo absurdo” que Camuns, habilmente, imprime no seu leitor durante o desenrolar dos acontecimentos narrados; onde não há lugar para emoções desejadas que, comumente, “floreiam” o mundo dos contos, reflexo perceptivo generalizado da própria existência do homem-no-mundo.
    Nesta história, diferente do que se espera pelo senso comum, parece haver um comprometimento do autor com o "sem-sentido", e os fatos não obedecem a regras determinadas e condicionadas pela lógica esperada, ou seja, existe a clara intenção de se expor o absurdo, que parece caracterizar a existência. Mas como podemos pensar o absurdo da existência? O da lógica, onde o absurdo é tomado simplesmente como sinônimo do falso, ou por uma oposição a abstração racionalista, que visa delimitar o que não se enquadra em regras e condições pré-estabelecidas?
    Nestes termos, podemos pensar esse “absurdo” como sendo a falta de sentido, de justificativa racional para a existência do homem e do mundo no qual o eu existe. Mas se a razão é uma constituinte do homem, desvincular uma justificativa racional à sua existência só pode se dar por este homem em sua razão. Então, o absurdo seria fugir a uma justificativa racional para sua existência ou elaborar continuamente justificativas, até mesmo pela negação de qualquer sentido dessas? Kierkegaard diz que o absurdo implica, exatamente, na incapacidade de se conceber a subjetividade fora dos padrões propostos por um sistema racional. O absurdo é o paradoxo.  Para ele o indivíduo é uma subjetividade que não pode encontrar o seu fundamento em nenhum sistema racional, ou seja, num conjunto de elementos, concretos ou abstratos, intelectualmente organizado.
    É exatamente diante da falta de sentido dos movimentos factuais que se dão no decorrer de toda essa história, que podemos pensar sobre o comportamento estrangeirado do nosso protagonista, como sendo o de um homem vivendo num "mundo privado de luzes e ilusões" onde não encontra nenhuma familiaridade, nem esperança. Talvez, possamos até mesmo pensar que a palavra: “estrangeiro”, não seja a melhor metáfora para simbolizar o sentimento deste homem-no-mundo, já que nos remeteria a pensar apenas em alguém que "não é de", ou se sente incapaz de reconhecer-se pertencente a um determinado lugar em que viva, embora possa ter consciência de uma referência identitária de origem. A “alheabilidade” parece melhor representar a condição do absurdo da existência apresentada pelo romancista no comportamento do seu personagem.
    Vejamos alguns fatos no comportamento de Mersault que possam sinalizar esse “modus vivendi”:

    “A mãe de Mersault vivia num asilo e ele nunca a visitou, não porque existisse algum sentimento de magoa ou raiva dela, mas apenas por não ser importante ver sua mãe. Em geral tudo lhe é enfadonho. Diante da morte dela, vai ao seu enterro, e lá não demonstra qualquer dor, apenas uma sensação de querer estar longe dali. Para ele todos os atos e circunstâncias se deviam ao acaso. Nada mais. E é por esse mesmo acaso que ele se vê abordado por uns árabes que o ataca. Trava-se uma luta corporal, de vida e morte sem justificação. Cego pela luz do sol ele dispara a arma e mata um árabe, sem saber realmente porque isso ocorreu. Pelo crime vai ao tribunal e lá é acusado de assassino frio e monstruoso. Todas as testemunhas arroladas, vizinhos, pessoas do asilo onde sua mãe havia vivido, evocam diante do juiz, sua indiferença à figura materna, sua ausência de sentimento durante o enterro a não ser o sentimento de enfado. Seus vizinhos o acusam de que no mesmo dia da morte de sua mãe, dia que ele mesmo não sabia qual era, fizera amor com sua namorada. Porem, mesmo diante de tantas acusações o que lhe incomoda são os insetos, o calor local, únicos causadores de seu incômodo. E mesmo condenado à morte não demonstra indignação e sua perplexidade não o atinge mais que sua indiferença”.

    A partir do que vimos, podemos então perceber, pela visão do senso comum, um homem fútil, sem sentido, unidade e clareza num mundo, para ele, ininteligível. Os motivos dos seus atos não são compreensíveis e os sentidos turvos de sua existência se perdem por não haver motivação nem satisfação. Ele vive no instante e não conhece outra finalidade para a vida senão o momento que passa. Infiel, quer sempre provar novidades e recusa engajar-se em qualquer projeto futuro. A obscuridade de sua existência parece sinalizar não apenas a própria existência, mas o desespero característico da existência, pela inconsciência de seu “eu”, ou seja, de não saber ser “espírito”. Para Kierkegaard estar inconsciente ou não aceitar de que se é um “eu”, ou até mesmo na incapacidade de querer ser, é não compreender quem se é de fato. Este filósofo afirma que o homem vive na ilusão de ser o que de fato não é. Com isso, distanciado do que é, angustia-se, torna-se queixoso da falta de liberdade, como que cativo na plena liberdade de ser, e sem o conhecimento de si mesmo, na liberdade de ser, desespera-se. Assim sendo podemos compreender que quem desespera quer, no seu desespero, não ser ou ser ele mesmo. Desta forma, o desespero, segundo Kierkegaard, se baseia precisamente na inconsciência em que os homens estão do seu “destino espiritual” - isto é, ser um “eu”. E é pela degradação da consciência sob o ponto de vista do “eu”, ou seja, o eu cuja medida é o homem, que o nosso personagem vive por demais inconscientes de si e dos outros. É exatamente devido à ausência do vínculo profundo do espírito, que não se é mais do que uma mistura sem nexo de um pouco de ação, de acaso e de acontecimento, e esta mistura parece se mostrar no comportamento do homem “estrangeiro”.
    Segundo Kierkegaard, por ser o homem uma derivação da síntese de finito e infinito, temporal e eterno, possíbilidade e necessidade, ou seja, na relação discordante desta síntese dialética, como reflexo de ser si próprio e em relação a Deus, é que surge o “desespero humano”. Assim, pelo que observamos no comportamento de Meursault, podemos pensar que ele se desespera pela carência de infinito, de necessário e eterno, na inconsciência do “eu” que é.
    Em suas reflexões pautadas na dialética, Kierkegaard, acredita que o homem, escolhe sua própria forma de existir e sendo assim, ele vai distinguir três modos fundamentais de viver no mundo: o estético, o ético e o religioso. Desta forma, a partir dos fatos narrados, acreditamos poder utilizar esse conceito, para pensar este homem, Meursault, predominantemente existindo no estádio estético, onde tudo que ele experiência se dá na ordem do sensível, submerso no tédio, movido pelas circunstâncias e totalmente distante do sentido ético da existência. Podemos ver que ele vive no e para o “aqui e agora”. É neste estágio que eclode toda a mesquinhez e o narcisismo, onde nada é estritamente impossível. O que interessa ao homem deste estágio é o jogo da sedução, da manipulação onde os meios justificam-se pelos fins. Este homem apropria-se do entorno e faz de sua existência uma representação exclusivamente individual, não considera a instância de deveres éticos ou das obrigações sociais, esgota-se na exterioridade representada.
    Por fim, desejamos sugerir, a partir de tudo o que aqui foi dito, a possibilidade de olhar para o absurdo da existência, não pela incapacidade da elaboração racional que a própria existência sugere para a razão e que foi muito bem demonstrado pelo “estrangeirismo” de Meursaut, mas o absurdo da existência pela inconsciência do homem da sua existência sem Deus, ou seja, existir se bastando no mundo apenas pelo modo ético e/ou estético.
    Vislumbrar o “eu” que se é no absurdo da existência, só é possível, pensamos, através de outro absurdo maior, o absurdo da fé, já que crer em Deus é um “salto” de fé, um comprometimento com O próprio absurdo, e para isso não é necessário haver qualquer tipo de elaboração racional de cunho filosófico, teológico ou provas empíricas, nem mesmo esperança, mas fé. Ao mesmo tempo em que a fé é um movimento para o absurdo, ao eterno, também é um movimento de retorno à temporalidade, pois se mostra em ações do homem na existência. Paradoxalmente, o luto entre o homem e o absurdo acontece exatamente no "salto" para Deus em Cristo - o fim do absurdo enquanto tal.