segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

AMNÉSICO

AMNÉSICO

Valdemilson Liberato


Saber realmente quem somos e para que somos no mundo é uma tarefa bastante complexa, e, desde tempos remotos, tem sido alvo da especulação do imaginário humano, visto que, nem a razão da ciência, nem os fantásticos argumentos filosóficos, nem mesmos as mais variadas doutrinas religiosas puderam elucidar plenamente essas questões como fato. Porém temos, se não uma certeza, uma impressão nítida expressa em nosso ser, seja através do “mal-estar” caracterizado pela angústia ou pela sensação velada de desespero frente às ameaças do cotidiano, próprio do homem no decorrer de sua existência, que o que nos tornamos, está longe do que realmente somos em nossa essência.
Segundo Tournier (2002) se considerarmos a história da humanidade como sendo a história da vida de um homem - o homem-no-mundo -, diríamos que a infância da humanidade é a Antiguidade, a idade da poesia onde como uma criança-prodígio descobre sem muito esforço os tesouros mais verdadeiros da vida, especialmente no que se refere à arte, à poesia, a inocência que parece brotar de dentro do seu ser. É como se pudéssemos presenciar a graciosidade de uma criança nos seus primeiros anos de vida. Depois deste período singelo, observamos que a humanidade passa para outra fase de seu desenvolvimento denominada Idade Média, onde esta criança agora vai estar no período escolar, e onde vai absorver criteriosamente tudo o que lhe ensinam, acreditando piamente em tudo o que lhe dizem que deve crer. Como tendo um “mestre infalível”, dono de toda a verdade, acredita e acata todos os preceitos dos pais e professores detentores de toda a verdade e considerados como deuses. Esta é também a idade da religião aprendida e com isso, outro mestre surge com grande poder – a Igreja. Esta, com veste de autoridade suprema impõem-lhes todo um sistema de pensamento que vai manipular e direcionar de modo avassalador a sua existência. A aceitação da fé e da moral que lhes ensinam torna-se inquestionável e mesmo quando desobedece, não há dúvida de sua autoridade.
Esta criança em desenvolvimento chega a uma fase de sua existência em que se vai chamar de adolescência – a modernidade. Surge então uma grande quantidade de novos conhecimentos que vão gerar uma espécie de “fome” do saber e a necessidade de aspiração à experiência pessoal. Parece ser exatamente aí que se desenvolve uma gama de sentimentos contrários a quase tudo o que se acreditava anteriormente, pois percebem que seus antigos mestres tinham lhe ocultado uma série de fatos importantes, seja intencionalmente ou por ignorância, para a compreensão daquilo que lhe impunha como verdade. Assim sendo se rebela contra tudo e todos. Conclama o direito de pensar e conduzir-se por si mesmo e não segundo um sistema de pensamento já proposto ou de uma autoridade previamente constituída. Tenta a todo custo tornar-se o “dono da razão” quando percebe a fragilidade do saber humano. Debate com os seus antigos mestres sobre suas “verdades” e, quase sempre sai vencedor ao constatar que eles não possuem respostas para os seus questionamentos, agravado pelo fato destes, na maioria das vezes, não aplicarem em sua vida moral o que lhe ensinam com tanto esmero.
Este é o “jovem-no-mundo”, que tenta se afirmar em si mesmo, porém, sob uma forma oposicionista. Acreditando numa pseudo-liberdade, tenta prová-la infringindo a tudo aquilo, que até então, aceitara como verdade. Contudo essa liberdade não passa de um “espernear malcriado” sem objetivos mais concretos e criativos.
Da mesma forma, podemos analogamente perceber que a esta crise descrita como adolescência assemelha-se ao surgimento do Renascimento que como descreveu Tournier: “assumiu a uma posição contraria à cosmovisão que a Antiguidade e a Idade Média havia lhe ensinado.”(2002, p.16). E assim sendo, diz ele:

(...) substituiu a visão espiritual, religiosa e poética do mundo por uma visão científica, realista, econômica. Tal como adolescente, a humanidade lançou-se, apaixonada e tumultuosamente, ao estudo de doutrinas extremistas e contraditórias. Foi uma violenta reação contra a pretensão que tivera, no fim da Idade Média, de colocar toda a cultura e a vida num sistema rígido e lógico, proveniente da fé. (Id., p.16)

A visão do mundo então vai se transformar, como pela visão deste adolescente, numa farsa a ser contestada e rejeitada a todo custo. E para isso torna-se importante primeiro julgar e condenar os seus algozes e depois inverter toda a ordem até então constituída. É assim que o mundo moderno vai encontrar na Igreja a figura a ser culpada, assim como para o adolescente são os seus pais, de todas as mazelas que travaram o verdadeiro conhecimento da verdade existencial e com isso da sua própria identidade. Essa visão pode ser encarnada no pensamento de Nietzsche (1986) que argumenta que a idéia de Deus foi, até o presente momento, o maior obstáculo contra a existência
Segundo Tournier, outra característica peculiar a esse jovem adolescente é a injúria, onde há uma clara pretensão em suas atitudes em denegrir e zombar de seus pais, vendo hipocrisia na maioria de seus atos que configura um conformismo moral e social. Essa atitude dos jovens também pode ser evidenciada na figura do homem moderno. Sartre é um exemplo deste homem moderno que acredita existir de forma compulsiva uma grande farsa nos valores tradicionais. Tournier cita Gabriel Marcel, que evidencia “o ressentimento que anima Sartre contra tudo a que se possa chamar de “ordem social” ou simplesmente de ordem” Um exemplo disto pode ser visto na citação que Sartre faz de uma suposta figura fictícia do pai. Para Sartre: “ser pai de família é ser, sempre, e de modo inevitável, alguém que brinca de ser pai de família...” (Id., p. 16).
Esta é a suposta fase onde eclodem as dúvidas existenciais. Uma profunda incerteza permeia o modo como o homem se percebe, e sua incompreensão do que lhe é mais próprio. Agravado pelas inevitáveis possibilidades de escolhas que é inerente à sua existência surge o medo. É na dissociação entre a vida espiritual e vida natural que esse medo se estabelece.
Tudo o que se convencionou a chamar de “valores” foi colocado em “xeque” pela modernidade. Pretendeu-se não só ignorar o que é abrangido pela palavra “moral”, como também tudo o que se relaciona com ela, seja a filosofia, religião ou poesia.
Na era científica moderna o que é natural passa a ser apregoado com uma nova óptica. Através das perspectivas dos fenômenos observáveis, arraigadas em conceitos próprios e centradas em suas próprias leis - de grandezas, forças, pesos, etc. - a ciência repudiará tudo o que venha a proceder de um ponto de vista subjetivo. Assim é que o homem moderno rejeitará o que não é “fato”, e com isso, apesar das maravilhas da tecnologia, perde-se o sentido dos símbolos, da arte, da intuição, distanciando-se cada vez mais do que lhe é próprio e reduzindo pelo impessoal o leque de suas escolhas.
Pensamos na possibilidade então, que nesse processo de distanciamento do que lhe é mais próprio, o homem no mundo, no exercício da liberdade, naturaliza-se. Deixando o sobre-natural que o constitui – o Espírito – o Ser se apresenta ao que é mais próprio do mundo – o ente – em que se dar a pre-sença. Segundo Heidegger: “A pre-sença é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.”(1989, p. 256)
O livro da Gênesis (3.15-19) relata que, após ser expulso do Paraíso – que podemos traduzir como a perda do conhecimento e relacionamento com Deus, ou seja, intimidade – o homem se depara com as terríveis conseqüências da sua escolha. Lançado no mundo, sob a égide do pecado, vivencia as mazelas que irão acompanhá-lo na temporalidade – hostilidade, dor, sofrimento, desejo libidinoso, desigualdade, fadiga e morte. Tomando como base este livro da Bíblia, podemos supor que o ato da escolha do pecado deu início ao processo gradual da “alienação” do Ser e a conseqüente “desumanização” do homem. Distanciando-se de seu Criador, na historicidade de sua existência, o ser-no-mundo passa a delinear-se como uma espécie de criatura de sua própria criação, subvertendo, assim, os valores no que concernem sujeito e objeto, refletido no seu relacionamento com o outro, com Deus e consigo mesmo
Cremos ser oportuno ressaltar aqui, de forma despretensiosa, apenas como curiosidade, que a maioria dos povos na antiguidade, como por exemplo, os gregos e os romanos, entre outros, intuíam a criação do homem pela junção do sobrenatural com o natural, de finito e infinito. É interessante também perceber, que, no caso da cultura greco-romana, existem incríveis semelhanças com a concepção judaico-cristã quanto à criação e queda do ser humano. Na mitologia grega, por exemplo, segundo diversas versões míticas, foi uma divindade chamada Prometeu que criou do barro o primeiro homem, após misturar um pouco de terra com água, formando-o a semelhança dos deuses e assim sendo, diferenciando-o das outras criaturas.
Heidegger, em Ser e Tempo, também vai se utilizar desta concepção mística, que permeia a compreensão do homem sobre a sua origem existencial - constituído de corpo, alma e espírito - pela interpretação pré-ontológica da pre-sença, através de uma antiga fábula, na tentativa de pensar, o que ele denominará como sendo “cura”, o “cuidado”, ou seja, exatamente aquilo que abre ao homem o universo da pre-sença, o ser-no-mundo:

Certa vez, atravessando um rio,“cura” viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto “Cura” e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a ‘cura’ quem primeiro o formou, ele deve pertencer à ‘cura’ enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar ‘homo’, pois foi feito de húmus (terra).(1989, p.263,264)

Bem, em suma, o que pretendemos nestas breves reflexões é apenas reforçar a evidência de que a busca e a tentativa de se pensar e falar sobre a gênese, a essência do Ser e seu propósito existencial, desvanecido na alma pela existência inautêntica do homem-no-mundo, não é uma pretensa fuga da realidade ou da especulação medíocre de  homens incultos, preponderante das religiões no mundo, mas principalmente de razão ôntico-ontológico da filosofia e até mesmo dos argumentos contraditórios da ciência empírica, visto ser, inerente ao homem, na angústia de sua existência sem Deus, procurar, desesperadamente, entender o sentido do seu Ser amnésico.



Valdemilson Liberato
Rio, 25/01/2010




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



BIBLIA DE JERUSALÉM. Edição de 1998

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, parte I, 1989.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.

TOURNIER. P. Mitos e Neuroses: desarmonia da vida moderna. São Paulo: ABU Editora, 2002.

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