sábado, 19 de dezembro de 2009

"O SER-CONTEMPORÂNEO"

“O SER-CONTEMPORÂNEO”


Quando ouvimos falar sobre contemporaneidade podemos submergir em conceitos filosóficos distintos do que é pertinente a nossa própria vivência - da co-existência própria do ser-no-mundo que hoje somos - já que, do que se fala, é constitutivo de nossa própria experiência existencial, embora, nem sempre a mesma daqueles que versaram sobre o assunto. Contudo, o que podemos detectar é que transformações subjetivas sempre estiveram atreladas às macros e micros modificações sociais que acompanham a historicidade do homem em sua relação com o outro, com o mundo e consigo mesmo – sua existência. Para Sartre, a Existência não se explica nem define: vive-se apenas e vive-se de tal modo que é por ela que aparece o mundo, a verdade, o fundamento, a transcendência, o amor e a sociedade.
Entretanto, o modo de viver que hoje observamos no homem dito, “pós-moderno”, se dá na aparência da impotência diante da violência que o vitíma, pela degradação moral e ética que o caracteriza, e pela crueldade do abandono dos seus mais “necessitados” que o delimita. Onde os conceitos morais e éticos que nortearam as relações interpessoais se esvaneceram no eterno devir do ser diante da liberdade das escolhas, agora, “impostas” pelos padrões de valores hegemônicos atuais, tais como: o hedonismo, o consumismo, a instabilidade, o individualismo e a superação dos próprios limites para alcançar o sucesso a qualquer custo. Onde o ter-no-mundo parece sobrepor-se ao ser-no-mundo.
Esta é a época que se apresenta na historicidade como pós-moderna, onde os grandes esquemas explicativos caíram em descrédito e não há mais “garantias”, posto que mesmo a “ciência” já não pode ser considerada a fonte da verdade. Segundo Zajdsznajder (2001), “o pós-moderno não tem a pretensão de transformar o mundo nem se apresenta como ideologia ou um modo de pensar. Parece mais uma condição a que se chegou quando o mundo moderno atinge o seu limite e começa a desaparecer”.
O homem na atualidade parece se distanciar demasiadamente de si mesmo, diante dos sintomas de um tempo em que não mais se encontra uma essência e não se apresentam contornos, levando-o a um modo de viver irresponsável no trato com o outro, com o mundo e com sigo mesmo.
Com o intuito de relacionar esse caótico estado de deformação social a um modo de estar no mundo, buscamos neste texto, principalmente, nas reflexões realizadas através dos conceitos fenomenológicos existenciais de autores como Sartre, Kierkegaard e Heidegger - uma vez que esses filósofos tematizaram com muita propriedade o contexto histórico moderno, a angústia enquanto existencial, bem como os vários modos de estar no mundo - uma breve reflexão sobre estes “modus viventes” do homem contemporâneo.
Contudo, para iniciarmos qualquer conjectura sobre este tema, torna-se necessário ter em mente a importância da possibilidade da prevalência da verdade subjetiva sobre a verdade objetiva, isto é, o que existe é "a verdade que é verdadeira para mim". Kierkegaard (2003). Ou seja, quando dizemos que nosso pensamento corresponde à coisa que pensamos, estamos no mínimo inconscientes da mediação dos sentidos que é necessária ao conhecimento do objeto, mediação que é incompleta ou de algum modo prejudicada. Em outras palavras, quando identificamos o pensamento com o ser a ele correspondente, estamos nos enganando. Portanto, segundo Kierkegaard, quando alegamos conhecer uma coisa, só podemos dizer isto como um ato de fé.
Também, na relação homem-mundo, é de suma importância salientar aqui que para Heidegger (2009), mundo não se refere apenas a um espaço onde os indivíduos se localizam dissociado a ele, mas a um fenômeno de unidade. Assim sendo o dasein, por ser essencialmente uma abertura, não se fecha em si mesmo, estando sempre num contexto de relação com os outros entes que pertencem ao mundo. Na verdade, essa condição de ser em aberto já remete a uma certa restrição, visto que só se pode abrir algo dentro de determinados limites que o circunda. O mundo, que desde sempre é presente, oferece uma série de possibilidades e limites ao dasein nele lançado. O corpo que se possui, o local e o momento histórico em que se encontra; a família onde se nasce são condições que tanto podem abrir possibilidades, como podem excluí-las. Embora seja essencialmente abertura, o dasein na maioria das vezes se dá enquanto fechamento.
Heidegger percebe que há certa tendência no dasein a se tomar por um ser simplesmente dado, onde os sentidos já estarão previamente determinados e assim sendo, ao ser, o dasein já se constitui na impessoalidade, de forma que acaba na tutela do mundo pela escolha do impessoal, apresentando, em si mesmo, uma escolha imprópria. Assim, na abertura das possibilidades cotidianas do seu ser, compartilha pensamentos, desejos, onde dificilmente haverá um aprofundamento e reflexão, pois na maioria das vezes, com a intensa ocupação com as coisas do mundo, uma apropriação reflexiva acerca do que é dito, do que é lido, do que se faz, do que se pensa permanece no esquecimento.
Assim sendo, observamos que a libertação do homem da exploração pelo homem, as preocupações ecológicas com o meio ambiente, o controle da violência, são temas que se insurgem de forma dramática nos tempos atuais como necessidades urgentes para assegurar a sobrevivência do homem e de toda a terra. Desta forma, a sociedade, segundo Heidegger, está organizada de modo que o não servir à sobrevivência representa um perigo, uma ameaça, portanto ser, pensar, sentir, saber e fazer deve servir unicamente para garantir a segurança e a sobrevivência, e a serviço desta pseudo-segurança se encontra toda a nossa realidade. Assim sendo, sobreviver é a única ambição que vai restar ao “homem-contemporâneo”.
Na possibilidade de ser, no pensamento heideggeriano, o homem é à medida que diz e que demonstra seu ser. Porém o homem na historicidade do seu existir se distância demasiadamente de si mesmo pelo impessoal à medida que o mundo à sua volta o descaracteriza pelos seus apelos. Existir plenamente é a possibilidade do homem vivenciar profundamente a própria existência no que lhe é mais próprio, e assim, distinguir-se, apartar-se das próprias origens filosóficas conceituais e da razão cientificista que o determinam, sem com isso se tornar exclusivo, mas sim, um “ser-ai”.
Vivemos uma época paradoxal onde há no homem contemporâneo um misto de resignação e inconformismo, de esperança e desespero, de transformação e rotina, onde os sonhos são esquecidos pela força da vigília. Somos protagonistas e coadjuvantes de uma existência assolada pelas diferenças sociais que nos levam a outras diferenças e nos condenam a levar uma vida de uma falsa paz cercada pela violência, pela desigualdade, pelo hedonismo. Bauman, no seu livro “Vida Líquida” vai denominar esse modo de vida como sendo líquida, ou seja, uma vida sem parâmetros, amoral e anti-ética. A era da modernidade líquida – o pós-moderno. Esta é a época onde a distinção entre sujeito e objeto cedeu ao de consumidor e objeto de consumo. O homem pós-moderno tornou-se um ser, ao mesmo tempo consumidor e objeto de consumo. Um eterno insatisfeito, indefinido, inautêntico e incompleto. Direcionado principalmente pelos apelos consumistas característica do capitalismo moderno. Onde, acredita, que para aliviar a sua angústia de existir e encontrar a felicidade que necessita para viver necessita ter. É esta uma das faces do pós-moderno, onde os ricos vivem em seus “oásis” um egocentrismo excludente e os pobres em seus guetos sonham com uma inclusão a qualquer preço. Contudo, qualquer tipo de generalização é reforçar o próprio engano da pós-modernidade.
Kierkegaard afirmava que o homem vive na ilusão de ser o que de fato não é. Com isso, distanciado do que é, angustia-se, torna-se queixoso da falta de liberdade, como que cativo na plena liberdade de ser e sem o conhecimento de si mesmo na liberdade de ser, desespera-se. Assim sendo podemos compreender que quem desespera quer, no seu desespero ser ele mesmo.
Já para Sartre (1997) é a existência que distingue, dentre os seres vivos, um cuja estrutura implica uma consciência com poder nadificante e que, por isso, é liberdade que cria a sua própria essência e os valores, organizando e hierarquizando estes. Para ele, não há existência sem uma consciência que repila da sua estrutura constitutiva o ser-em-si numa negação interna irreversível e seja, ao mesmo tempo e por isso mesmo, um ser-para-si, isto é, uma Liberdade na escolha fundamental da sua própria existência que concretiza nas escolhas parciais inevitáveis e na transcendência do mundo e do outro a estabelecer o "circuito da ipseidade" no qual o homem se realiza e cria a sua essência. Segundo Sartre, todo fenômeno revela o ser-em-si e revela-o porque há uma consciência que não é nem pode ser nunca esse ser, uma consciência que é ser-para-si , com poder nadificante e criador, isto é, uma subjetividade livre pela qual há o mundo e nele se introduz a negação, se criam valores e é possível a ação; estabelecem-se relações intersubjetivas e aparecem atitudes éticas , formam-se sociedades e nelas se debatem e aplicam assuntos e problemas com os mais diversos nomes.
Desta forma, podemos supor que, este homem ao ser no mundo, é capaz de perde-se em sua existência puramente exterior e esquecer-se de ser em si mesmo. Ao escolher por não ser, torna-se outro no mundo. Assim sendo, inautêntico, prêso na liberdade que é, procura ser feliz através da ilusão da temporalidade. Busca nas coisas momentâneas o motivo de sua existência. Contudo, mesmo quando imerso na inconsciência do que lhe é mais próprio, sente que algo lhe falta. Um sentimento de vazio o incomoda, como se a insatisfação de não ter o condena-se a uma maldição eterna da busca do ter para ser. E assim, por mais que conquiste os seus “sonhos”, sempre restará a impressão em sua alma da incompletude.
A liberdade presume possibilidades, e a possibilidade é o elemento gerador da ação do homem em liberdade. Por ser um contingente da existência humana a liberdade implica na impossibilidade da não escolha. Essas possibilidades que exigem escolhas (até mesmo a de não escolher) proporciona o surgimento da angústia, seja porque estão escassas, ou, no outro extremo, porque existe um número muito grande de opções. Assim sendo, um colapso pode ocorrer tanto por muitas, quanto por poucas possibilidades abertas ao homem. Por isso torna-se um verdadeiro problema de vida descobrir quais são as ações que se devem tomar diante do temor da responsabilidade pelas conseqüências destas ações. É no cotidiano, imerso nas preocupações do dia a dia, que podemos nos negar.
Na incerteza de suas escolhas, o homem, na construção de sua historia, nunca esteve totalmente passivo diante das possibilidades que o mundo lhe apresenta. Na liberdade do ser, o ser-no-mundo, e assim, co-participante no que lhe traz possibilidades, buscou criar na “fantasia de ser”, as suas próprias possibilidades para, de certa forma, manter sob controle a angústia de uma existência mais autêntica. Uma dessas escolhas é, exatamente, não ser o que se é. Esta é a pretensiosa fuga da angústia que angustia, onde o ser querendo negar a si mesmo, diante da ameaça da sua existência mais autentica, (já que assumir o autêntico existir implica em responsabilidade), escolhe viver na inautenticidade. Assim sendo, inautêntico, o ser-no-mundo perde suas reais possibilidades de ser e constrói na inautenticidade um mundo inautêntico. Contudo é exatamente neste mundo construído pela fantasia do desejo de não ser, que se revela o real como um fantasma, que a todo instante, assombra-o, buscando a conscientização do ser para sua existência mais autêntica.
Existir é ser no mundo. E é na construção desse mundo que o homem se esforça para realizar a possibilidade de sua existência, cujo sentido fundamental é o tempo, horizonte de toda a compreensão e realização. Assim, podemos ver no decurso do tempo as variações particulares do modo de existir, relacionadas às possibilidades, que cada tempo disponibilizaram e as escolhas existenciais feitas.
Não é de se admirar que um dos pensadores mais aclamado do início deste tempo tenha sido, (e ainda é,) Nietzsche, que tem como uma de suas máximas a concepção de que: “A moral é o pecado contra o espírito da Terra”. (NIETZSCHE,1986) Invenção dos fracos que transformam a sua fraqueza em virtude. Nietzsche argumenta que a idéia de Deus foi, até o presente momento, o maior obstáculo contra a existência. Com isto, o que podemos supor é que assim como foi decretada a morte de Deus, esta época vai transformar em fraqueza, conceitos como a moral, o perdão, a humildade e o amor.
Pensamentos como esses, somados a um modo irresponsável de lhe dar com o outro e com o mundo, sob o desejo intenso de liberdade revelada na competitividade para a conquista a qualquer custo, do que é transitório, e isto, pela força do poder (científico, financeiro, social, ideológico, etc); rejeitando-se tudo o que pudesse ameaçar essa “liberdade”, inclusive Deus, criou-se uma atmosfera de condições propícias para novas possibilidades de existir, e, com isso, um novo modo de viver no calendário existencial do ser-no-mundo: o “ser-contemporâneo”.
Digamos que, enquanto a modernidade se caracterizou pela morte de Deus, a pós-modernidade começou com o decreto da morte do homem e da sociedade. Se fosse possível descrever a sua principal característica poderia ser a da fluidez. A vida e as relações sociais, segundo Bauman (2007), passaram a ser não só dinâmicas como também fluídas. A economia torna-se volátil e virtual. As relações políticas não se fundamentam no poder do Estado, mas no poder do capital que interfere nas ações do Estado e ultrapassa-lhe as fronteiras, aliás, eliminando as fronteiras, tornando-se fluído, por ser virtual. O mesmo se pode dizer da velocidade das descobertas da ciência que, tão logo aparecem, ajudam na construção de novas tecnologias para, em seguida, se tornar obsoleta em virtude de outras inovações e descobertas. Tudo é dinâmico e fluído, virtual. Assim, também são os valores éticos, sociais, culturais, espirituais e morais na contemporaneidade.
Por fim, este modo de existir contemporâneo pode muito bem ser relacionado ao que Kierkegaard vai descrever como sendo a do estágio estético. No qual vai se caracterizar como sendo o mundo da matéria. Onde o homem vive no e para o “aqui e agora”. É neste estágio que eclode toda a mesquinhez e o narcisismo, onde nada é estritamente impossível. O que interessa ao homem deste estágio é o jogo da sedução, da manipulação onde os meios justificam-se pelos fins. Este homem apropria-se do entorno e faz de sua existência uma representação exclusivamente individual, não considera a instância de deveres éticos ou das obrigações sociais, esgota-se na exterioridade representada. O esteta vive nas esferas das possibilidades e a expressão desse sujeito é sua rica, variada e vasta mobilidade de sentimentos. Aquele que vive esteticamente caminha subordinado “as ondas do momento” e não possui a lembrança das experiências vividas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4.ed. Ed. Vozes, Petrópolis, 2009.
KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano, Coleção a obra-prima de cada autor; Martin Claret, São Paulo, 2003.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
SARTRE, J.P. O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Ed. Vozes, Petrópolis, 1997.





Um comentário:

  1. Existir propriamente dito (ver-se), ter os sentidos sob controle crítico! Não somente os ditos mentalmente capazes, mas também àqueles cujas dificuldades lhes impõe limitações. Num instante qualquer de lucidez entre o nascimento e a morte, o ser-no-mundo, terá visto diante de si tantas e todas as razões para levantar os olhos para os Céus em busca da revisão de sua própria identidade. O Psicanalista belga Lebrun, em entrevista a VEJA edição 2142 9/12/09, quando perguntado sobre a aceitação da existência sofrida comum respodeu: Um tigre nasce tigre e assim será para o resto da vida, porém um humano precisa tornar-se plenamente humano. Soren Kierkegaard e mais apropriadamente Heidegger, trouxeram luz a metafísica tão sonhada pela necessidade de clareza aberta ao mundo por Aristóteles e desdenhanda por Alberto Caeiro pseudônimo do poeta Fernando Pessoa em seu poema "Há metafísica o bastante em não pensar em Nada" Professor Liberato; seu blog veio em boa hora. No Salmo 49:47,48 o salmista traduz o existir em algo bem simples: "Lembra-te de como é breve a minha existência!Pois criarias em vão todos os filhos dos homens!Que homem há, que viva e não veja a morte? Ou que livre a sua alma das garras do sepulcro?

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