domingo, 20 de dezembro de 2009

A GÊNESIS DO SER

A GÊNESIS DO SER
Valdemilson Liberato
Os criacionistas entendem que Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança, criando-o a partir do “pó da terra”, como narra o livro de Gênesis, enquanto os evolucionista pensam no homem surgido do “pó das estrelas”, pelo acaso, oriundo do Big Bang. No entanto, a teoria evolucionista não é de toda descartada pela Igreja Católica, ela é mais que uma hipótese, desde que nos moldes propostos por ela; não da maneira darwiniana, sem Deus, conduzida pelo acaso.
A Igreja aceita a possibilidade da evolução conduzida por Deus, aliás, como muitos físicos modernos estão mostrando. Criação e evolução não se opõem radicalmente entre si, desde que se admita que Deus criou a matéria inicial, dando-lhe as leis de sua evolução, e cria até hoje toda alma humana, que é espiritual, estando todas as coisas sob o Seu controle. Ela até admite que o corpo do homem, sendo matéria, pode ter vindo de matéria viva preexistente – “Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.” (Gn. 2,7) -, porém nunca dos macacos hoje existentes, pois estes já são muito especializados e não evoluem mais.
Contudo, não é minha intenção aqui, propor uma discussão sobre qual seria o conceito “mais correto” das origens do homem, nem tão pouco salientar algum tipo de conceito teológico ou científico a esse respeito, pelo contrário, o que pretendo é sugerir uma possibilidade de pensar quando do surgimento da duplicidade - ente e ser, para que, assim sendo, possamos vislumbrar essa possibilidade, ou seja, sobre como se deu esse processo do homem-no-mundo, o “ser-aí”, o dasein, que distingui-se dos outros entes por não se tratar de um ente simplesmente dado, mas que reconhece a sua condição de ser e que constitui-se tanto como singularidade quanto como a impessoalidade de todo mundo.
Permitam-me, assim, retirar das Escrituras Sagradas, subsídios na construção dessas possibilidades do surgimento e desenvolvimento desse ser.
O livro de Gênesis, como dito anteriormente, revela-nos, que Deus ao criar o homem o fez a Sua imagem e semelhança. Essa relação com Deus além de distinguir o homem dos animais, também implica dizer que, dentre outras concepções teológicas, o homem foi provido de alguns atributos divinos que o diferencia de todas as outras criaturas: inteligência, volição, sentimento, livre arbítrio, são alguns desses atributos que, na sua essência, torna o homem um ser diferenciado. Contudo, esses atributos que o torna um “ser por excelência”, também o delega uma primeira angustiante responsabilidade na sua existência, ou seja, o sentimento que ocorre frente à possibilidade, caracterizando a sua situação de liberdade, pois lhe foi dado à capacidade de escolha, e assim sendo, tornara-se responsável pelas conseqüências de todas as escolhas que fizer durante a sua existência.
Também é importante salientar que a Bíblia nos revela que à semelhança do Ser eterno, o homem foi criado para ser infinito, e que todas as orientações foram-lhe transmitidas pelo próprio Deus para que ele assim permanecesse – “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer” (Gn. 2.16,17). Contudo, como sendo o homem um ser capaz de escolhas, de ter a “liberdade para o pecado”, sucumbiu diante de sua primeira escolha, ou seja, entre obedecer e desobedecer a Deus, ele optou por desobedecer, e como toda escolha remete a uma conseqüência esta foi a mais terrível: a escolha pelo pecado resultou na sua finitude.
Diante do pecado original, Adão traz a consciência da culpabilidade, sofrimento e angústia gerada pela perda da sua identidade pela duplicidade paradoxal do seu “eu”, agora, infinito e finito.
Na escolha pelo “fruto proibido” o homem, segundo a Bíblia, transgrediu conscientemente um preceito de Deus, reivindicando a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal e assim sendo arcar com as conseqüências de suas escolhas – o ser-para-a-morte.
Podemos, deste modo, pensar no desdobramento do ser lançado no mundo, agora já não mais o homem no paraíso, o ser completo - Deus-homem, dentro dos cuidados e limites de uma verdadeira Teocracia, mas, agora, permitindo-se ser, aquele que está exposto, separado do seu Criador, aberto, vulnerável a angústia de sua finitude, sujeito à impessoalidade e conseqüentemente com o convívio da perda de sua identidade.
Acreditamos que a angústia surge, exatamente, frente à liberdade diante das possibilidades, a esse real estabelecido e ao futuro que coloca o Dasein em contato com o seu ser mais próprio, embora, ao mesmo tempo, tenta desesperadamente encobrir.
“Ser-aí” é aquilo que é característico do homem. Só o homem, na concepção heideggeriana, existe como um “ser-aí” capaz de revelar-se, sem se esgotar ou identificar com ele. O homem teria a possibilidade de trazê-lo à luz e apresentar-se enquanto tal, ou seja, sendo um ser que se mostra no tempo. Torna-se muito importante, também, salientar que por ser dotado de linguagem, o homem tem a condição necessária para a manifestação do próprio ser no tempo, não como objeto tradicional das ciências e filosofia ocidental, mas na forma de uma subjetividade entrelaçada, na qual sujeito e objeto se mesclam em um pensamento originário.
Heidegger supõe que o homem possa pensar a verdade do ser a partir da existência, isto é, daquilo que se apresenta como “ser-aí”, a própria essência humana. Todavia, para experimentar sua essência e morada é preciso que se retome as questões originárias da história do ser: a sua “pátria”, que na sua concepção não tem uma conotação nacionalista, mas apenas ontológica-historial de um momento no qual o homem esteve mais próximo do Ser. O esquecimento do Ser é o resultado desse distanciamento do homem de sua “pátria”.
Embora a metafísica heideggeriana revele um forte apelo à tradição clássica , sugerindo, diante desse distanciamento, à volta ao pensamento original helênico, penso não ser de muita ousadia sugerir à possibilidade dessa “pátria” se encontrar um pouco antes desse pensamento, talvez, quem sabe, na origem de tal pensamento, ou seja, no pensamento pré-helênico, provavelmente naquele que descrevi anteriormente sobre a gênesis do ser, já que se torna muito difícil examinar qualquer origem filosófica senão juntamente com os conceitos religiosos de cujo contexto fazem parte.
Seguindo essa possibilidade existencial originária, remeto-me ao pensamento de Kierkegaard onde, segundo ele, crer em Deus era um salto de fé, um comprometimento com o absurdo. Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver esta fé. A fé é impossível se houver provas e certezas. Sem riscos não há fé, é uma impossibilidade. A fé e a razão são oposições mutuamente exclusivas.
Por este víeis então, podemos supor que este homem em liberdade na opção da escolha que o caracteriza, se ausentou do que lhe era mais próprio, o Ser, e passou simplesmente a existir. Desvinculando-se do Ser-absoluto e gradativamente desapercebendo-se de sua singularidade, entifica-se por sua escolha no impessoal.
Torna-se importante lembrar que foi exatamente pela possibilidade da sugestão do impessoal na figura da serpente do jardim do Éden que o homem sucumbiu na sua primeira escolha – a transgressão:
“... “Então Deus disse: Vós não podeis comer do fruto das árvores do jardim?”A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das arvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós se- reis como deuses, versado no bem e no mal.” (Gn. 3.1-5)
A serpente serve aqui de mascara para designar o que é impessoal, inimigo do que é mais próprio do Ser – homem e Deus. O conhecimento do bem e do mal, não se trata nem da onisciência, nem do discernimento moral, Mas é a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal, e de agir conseqüentemente conforme a reivindicação desta autonomia moral pelo qual o homem nega a soberania de Deus em sua vida. Torna-se assim a soberania da alma sobre o espírito.
Nesta condição de afastamento do Ser, “expulso do paraíso”, o homem livre em suas escolhas, mas velado em sua singularidade, torna-se um ser lançado no mundo, aberto a uma existência pautada no devir e se constitui como “ser-no-mundo”, o Dasein, irredutível a qualquer forma de objetivação, mas, quase sempre, sucumbido no modo existencial da impessoalidade. Heidegger vai nomear de autenticidade a possibilidade da apropriação de nossas singularidade, que ocorre quando nos damos conta da nossa facticidade e de nossa condição de abertura. Contudo, ela nunca vai se dar por completo, já que não há a como se livrar totalmente do impessoal, pois embora na medida que temos consciência de estarmos em aberto e percebemos a ilusão á qual nos damos a conhecer como identidade, podemos nos apropriar de outros modos de se dar, estabelecendo novas identidades e modo de lidar com o outro, porem, contudo, continuando impregnado de inautenticidade.
Para Kierkegaard estar inconsciente ou não aceitar de que se tem um Eu, ou seja, o ser um ser espiritual, ou até mesmo na incapacidade de querer ser, é não compreender quem se é de fato. Pois, para ele, o homem é uma síntese de finito e infinito. De sua relação consigo mesma e com Deus. E é exatamente da discordância interna dessa síntese consigo própria e em relação a Deus, que surge o “desespero humano”. (Kierkegaard, 2003)
Para o apóstolo Paulo (I Co.15,45) como para a tradição bíblica a psyché (alma) é o princípio vital que anima o corpo humano, ou seja, a vida natural. Esta, criada pela junção do espírito (pneuma) ao corpo, formando assim o “zoé”, o “eu para Deus”, o eu infinito, o “eu teológico” que em sua origem, passa a ser a sede da vida moral e dos sentimentos. Contudo, como resultado da desobediência à Deus, afastado do que lhe e mais próprio, tornou-se o eu derivado do pecado. O “eu humano”, “psyché”, sede de todas as paixões humanas e sucumbido aos anseios do mundo.
No princípio, pela doutrina do pecado original, Paulo, baseado nas Escrituras, descreve que o pecado passou a habitar o homem, e assim, a morte, conseqüência do pecado, entrou no mundo a partir da falta de Adão. O pecado separou o homem de Deus. Esta separação é a morte espiritual da qual a morte física é apenas um sinal. Nasce assim o “eu-para-morte”. A psyché, desta maneira, torna-se a sede do eu perdido, o eu inaltêntico. O eu do ser-para-a-morte.

sábado, 19 de dezembro de 2009

"O SER-CONTEMPORÂNEO"

“O SER-CONTEMPORÂNEO”


Quando ouvimos falar sobre contemporaneidade podemos submergir em conceitos filosóficos distintos do que é pertinente a nossa própria vivência - da co-existência própria do ser-no-mundo que hoje somos - já que, do que se fala, é constitutivo de nossa própria experiência existencial, embora, nem sempre a mesma daqueles que versaram sobre o assunto. Contudo, o que podemos detectar é que transformações subjetivas sempre estiveram atreladas às macros e micros modificações sociais que acompanham a historicidade do homem em sua relação com o outro, com o mundo e consigo mesmo – sua existência. Para Sartre, a Existência não se explica nem define: vive-se apenas e vive-se de tal modo que é por ela que aparece o mundo, a verdade, o fundamento, a transcendência, o amor e a sociedade.
Entretanto, o modo de viver que hoje observamos no homem dito, “pós-moderno”, se dá na aparência da impotência diante da violência que o vitíma, pela degradação moral e ética que o caracteriza, e pela crueldade do abandono dos seus mais “necessitados” que o delimita. Onde os conceitos morais e éticos que nortearam as relações interpessoais se esvaneceram no eterno devir do ser diante da liberdade das escolhas, agora, “impostas” pelos padrões de valores hegemônicos atuais, tais como: o hedonismo, o consumismo, a instabilidade, o individualismo e a superação dos próprios limites para alcançar o sucesso a qualquer custo. Onde o ter-no-mundo parece sobrepor-se ao ser-no-mundo.
Esta é a época que se apresenta na historicidade como pós-moderna, onde os grandes esquemas explicativos caíram em descrédito e não há mais “garantias”, posto que mesmo a “ciência” já não pode ser considerada a fonte da verdade. Segundo Zajdsznajder (2001), “o pós-moderno não tem a pretensão de transformar o mundo nem se apresenta como ideologia ou um modo de pensar. Parece mais uma condição a que se chegou quando o mundo moderno atinge o seu limite e começa a desaparecer”.
O homem na atualidade parece se distanciar demasiadamente de si mesmo, diante dos sintomas de um tempo em que não mais se encontra uma essência e não se apresentam contornos, levando-o a um modo de viver irresponsável no trato com o outro, com o mundo e com sigo mesmo.
Com o intuito de relacionar esse caótico estado de deformação social a um modo de estar no mundo, buscamos neste texto, principalmente, nas reflexões realizadas através dos conceitos fenomenológicos existenciais de autores como Sartre, Kierkegaard e Heidegger - uma vez que esses filósofos tematizaram com muita propriedade o contexto histórico moderno, a angústia enquanto existencial, bem como os vários modos de estar no mundo - uma breve reflexão sobre estes “modus viventes” do homem contemporâneo.
Contudo, para iniciarmos qualquer conjectura sobre este tema, torna-se necessário ter em mente a importância da possibilidade da prevalência da verdade subjetiva sobre a verdade objetiva, isto é, o que existe é "a verdade que é verdadeira para mim". Kierkegaard (2003). Ou seja, quando dizemos que nosso pensamento corresponde à coisa que pensamos, estamos no mínimo inconscientes da mediação dos sentidos que é necessária ao conhecimento do objeto, mediação que é incompleta ou de algum modo prejudicada. Em outras palavras, quando identificamos o pensamento com o ser a ele correspondente, estamos nos enganando. Portanto, segundo Kierkegaard, quando alegamos conhecer uma coisa, só podemos dizer isto como um ato de fé.
Também, na relação homem-mundo, é de suma importância salientar aqui que para Heidegger (2009), mundo não se refere apenas a um espaço onde os indivíduos se localizam dissociado a ele, mas a um fenômeno de unidade. Assim sendo o dasein, por ser essencialmente uma abertura, não se fecha em si mesmo, estando sempre num contexto de relação com os outros entes que pertencem ao mundo. Na verdade, essa condição de ser em aberto já remete a uma certa restrição, visto que só se pode abrir algo dentro de determinados limites que o circunda. O mundo, que desde sempre é presente, oferece uma série de possibilidades e limites ao dasein nele lançado. O corpo que se possui, o local e o momento histórico em que se encontra; a família onde se nasce são condições que tanto podem abrir possibilidades, como podem excluí-las. Embora seja essencialmente abertura, o dasein na maioria das vezes se dá enquanto fechamento.
Heidegger percebe que há certa tendência no dasein a se tomar por um ser simplesmente dado, onde os sentidos já estarão previamente determinados e assim sendo, ao ser, o dasein já se constitui na impessoalidade, de forma que acaba na tutela do mundo pela escolha do impessoal, apresentando, em si mesmo, uma escolha imprópria. Assim, na abertura das possibilidades cotidianas do seu ser, compartilha pensamentos, desejos, onde dificilmente haverá um aprofundamento e reflexão, pois na maioria das vezes, com a intensa ocupação com as coisas do mundo, uma apropriação reflexiva acerca do que é dito, do que é lido, do que se faz, do que se pensa permanece no esquecimento.
Assim sendo, observamos que a libertação do homem da exploração pelo homem, as preocupações ecológicas com o meio ambiente, o controle da violência, são temas que se insurgem de forma dramática nos tempos atuais como necessidades urgentes para assegurar a sobrevivência do homem e de toda a terra. Desta forma, a sociedade, segundo Heidegger, está organizada de modo que o não servir à sobrevivência representa um perigo, uma ameaça, portanto ser, pensar, sentir, saber e fazer deve servir unicamente para garantir a segurança e a sobrevivência, e a serviço desta pseudo-segurança se encontra toda a nossa realidade. Assim sendo, sobreviver é a única ambição que vai restar ao “homem-contemporâneo”.
Na possibilidade de ser, no pensamento heideggeriano, o homem é à medida que diz e que demonstra seu ser. Porém o homem na historicidade do seu existir se distância demasiadamente de si mesmo pelo impessoal à medida que o mundo à sua volta o descaracteriza pelos seus apelos. Existir plenamente é a possibilidade do homem vivenciar profundamente a própria existência no que lhe é mais próprio, e assim, distinguir-se, apartar-se das próprias origens filosóficas conceituais e da razão cientificista que o determinam, sem com isso se tornar exclusivo, mas sim, um “ser-ai”.
Vivemos uma época paradoxal onde há no homem contemporâneo um misto de resignação e inconformismo, de esperança e desespero, de transformação e rotina, onde os sonhos são esquecidos pela força da vigília. Somos protagonistas e coadjuvantes de uma existência assolada pelas diferenças sociais que nos levam a outras diferenças e nos condenam a levar uma vida de uma falsa paz cercada pela violência, pela desigualdade, pelo hedonismo. Bauman, no seu livro “Vida Líquida” vai denominar esse modo de vida como sendo líquida, ou seja, uma vida sem parâmetros, amoral e anti-ética. A era da modernidade líquida – o pós-moderno. Esta é a época onde a distinção entre sujeito e objeto cedeu ao de consumidor e objeto de consumo. O homem pós-moderno tornou-se um ser, ao mesmo tempo consumidor e objeto de consumo. Um eterno insatisfeito, indefinido, inautêntico e incompleto. Direcionado principalmente pelos apelos consumistas característica do capitalismo moderno. Onde, acredita, que para aliviar a sua angústia de existir e encontrar a felicidade que necessita para viver necessita ter. É esta uma das faces do pós-moderno, onde os ricos vivem em seus “oásis” um egocentrismo excludente e os pobres em seus guetos sonham com uma inclusão a qualquer preço. Contudo, qualquer tipo de generalização é reforçar o próprio engano da pós-modernidade.
Kierkegaard afirmava que o homem vive na ilusão de ser o que de fato não é. Com isso, distanciado do que é, angustia-se, torna-se queixoso da falta de liberdade, como que cativo na plena liberdade de ser e sem o conhecimento de si mesmo na liberdade de ser, desespera-se. Assim sendo podemos compreender que quem desespera quer, no seu desespero ser ele mesmo.
Já para Sartre (1997) é a existência que distingue, dentre os seres vivos, um cuja estrutura implica uma consciência com poder nadificante e que, por isso, é liberdade que cria a sua própria essência e os valores, organizando e hierarquizando estes. Para ele, não há existência sem uma consciência que repila da sua estrutura constitutiva o ser-em-si numa negação interna irreversível e seja, ao mesmo tempo e por isso mesmo, um ser-para-si, isto é, uma Liberdade na escolha fundamental da sua própria existência que concretiza nas escolhas parciais inevitáveis e na transcendência do mundo e do outro a estabelecer o "circuito da ipseidade" no qual o homem se realiza e cria a sua essência. Segundo Sartre, todo fenômeno revela o ser-em-si e revela-o porque há uma consciência que não é nem pode ser nunca esse ser, uma consciência que é ser-para-si , com poder nadificante e criador, isto é, uma subjetividade livre pela qual há o mundo e nele se introduz a negação, se criam valores e é possível a ação; estabelecem-se relações intersubjetivas e aparecem atitudes éticas , formam-se sociedades e nelas se debatem e aplicam assuntos e problemas com os mais diversos nomes.
Desta forma, podemos supor que, este homem ao ser no mundo, é capaz de perde-se em sua existência puramente exterior e esquecer-se de ser em si mesmo. Ao escolher por não ser, torna-se outro no mundo. Assim sendo, inautêntico, prêso na liberdade que é, procura ser feliz através da ilusão da temporalidade. Busca nas coisas momentâneas o motivo de sua existência. Contudo, mesmo quando imerso na inconsciência do que lhe é mais próprio, sente que algo lhe falta. Um sentimento de vazio o incomoda, como se a insatisfação de não ter o condena-se a uma maldição eterna da busca do ter para ser. E assim, por mais que conquiste os seus “sonhos”, sempre restará a impressão em sua alma da incompletude.
A liberdade presume possibilidades, e a possibilidade é o elemento gerador da ação do homem em liberdade. Por ser um contingente da existência humana a liberdade implica na impossibilidade da não escolha. Essas possibilidades que exigem escolhas (até mesmo a de não escolher) proporciona o surgimento da angústia, seja porque estão escassas, ou, no outro extremo, porque existe um número muito grande de opções. Assim sendo, um colapso pode ocorrer tanto por muitas, quanto por poucas possibilidades abertas ao homem. Por isso torna-se um verdadeiro problema de vida descobrir quais são as ações que se devem tomar diante do temor da responsabilidade pelas conseqüências destas ações. É no cotidiano, imerso nas preocupações do dia a dia, que podemos nos negar.
Na incerteza de suas escolhas, o homem, na construção de sua historia, nunca esteve totalmente passivo diante das possibilidades que o mundo lhe apresenta. Na liberdade do ser, o ser-no-mundo, e assim, co-participante no que lhe traz possibilidades, buscou criar na “fantasia de ser”, as suas próprias possibilidades para, de certa forma, manter sob controle a angústia de uma existência mais autêntica. Uma dessas escolhas é, exatamente, não ser o que se é. Esta é a pretensiosa fuga da angústia que angustia, onde o ser querendo negar a si mesmo, diante da ameaça da sua existência mais autentica, (já que assumir o autêntico existir implica em responsabilidade), escolhe viver na inautenticidade. Assim sendo, inautêntico, o ser-no-mundo perde suas reais possibilidades de ser e constrói na inautenticidade um mundo inautêntico. Contudo é exatamente neste mundo construído pela fantasia do desejo de não ser, que se revela o real como um fantasma, que a todo instante, assombra-o, buscando a conscientização do ser para sua existência mais autêntica.
Existir é ser no mundo. E é na construção desse mundo que o homem se esforça para realizar a possibilidade de sua existência, cujo sentido fundamental é o tempo, horizonte de toda a compreensão e realização. Assim, podemos ver no decurso do tempo as variações particulares do modo de existir, relacionadas às possibilidades, que cada tempo disponibilizaram e as escolhas existenciais feitas.
Não é de se admirar que um dos pensadores mais aclamado do início deste tempo tenha sido, (e ainda é,) Nietzsche, que tem como uma de suas máximas a concepção de que: “A moral é o pecado contra o espírito da Terra”. (NIETZSCHE,1986) Invenção dos fracos que transformam a sua fraqueza em virtude. Nietzsche argumenta que a idéia de Deus foi, até o presente momento, o maior obstáculo contra a existência. Com isto, o que podemos supor é que assim como foi decretada a morte de Deus, esta época vai transformar em fraqueza, conceitos como a moral, o perdão, a humildade e o amor.
Pensamentos como esses, somados a um modo irresponsável de lhe dar com o outro e com o mundo, sob o desejo intenso de liberdade revelada na competitividade para a conquista a qualquer custo, do que é transitório, e isto, pela força do poder (científico, financeiro, social, ideológico, etc); rejeitando-se tudo o que pudesse ameaçar essa “liberdade”, inclusive Deus, criou-se uma atmosfera de condições propícias para novas possibilidades de existir, e, com isso, um novo modo de viver no calendário existencial do ser-no-mundo: o “ser-contemporâneo”.
Digamos que, enquanto a modernidade se caracterizou pela morte de Deus, a pós-modernidade começou com o decreto da morte do homem e da sociedade. Se fosse possível descrever a sua principal característica poderia ser a da fluidez. A vida e as relações sociais, segundo Bauman (2007), passaram a ser não só dinâmicas como também fluídas. A economia torna-se volátil e virtual. As relações políticas não se fundamentam no poder do Estado, mas no poder do capital que interfere nas ações do Estado e ultrapassa-lhe as fronteiras, aliás, eliminando as fronteiras, tornando-se fluído, por ser virtual. O mesmo se pode dizer da velocidade das descobertas da ciência que, tão logo aparecem, ajudam na construção de novas tecnologias para, em seguida, se tornar obsoleta em virtude de outras inovações e descobertas. Tudo é dinâmico e fluído, virtual. Assim, também são os valores éticos, sociais, culturais, espirituais e morais na contemporaneidade.
Por fim, este modo de existir contemporâneo pode muito bem ser relacionado ao que Kierkegaard vai descrever como sendo a do estágio estético. No qual vai se caracterizar como sendo o mundo da matéria. Onde o homem vive no e para o “aqui e agora”. É neste estágio que eclode toda a mesquinhez e o narcisismo, onde nada é estritamente impossível. O que interessa ao homem deste estágio é o jogo da sedução, da manipulação onde os meios justificam-se pelos fins. Este homem apropria-se do entorno e faz de sua existência uma representação exclusivamente individual, não considera a instância de deveres éticos ou das obrigações sociais, esgota-se na exterioridade representada. O esteta vive nas esferas das possibilidades e a expressão desse sujeito é sua rica, variada e vasta mobilidade de sentimentos. Aquele que vive esteticamente caminha subordinado “as ondas do momento” e não possui a lembrança das experiências vividas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4.ed. Ed. Vozes, Petrópolis, 2009.
KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano, Coleção a obra-prima de cada autor; Martin Claret, São Paulo, 2003.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
SARTRE, J.P. O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Ed. Vozes, Petrópolis, 1997.





sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

RESGATANDO A “DIAKONÍA”

O Livro dos Atos dos Apóstolos mostra-nos, no dia de Pentecoste, o inicio do miraculoso crescimento do número de fiéis que, ao ouvirem as “Boas Novas” transmitidas pelos apóstolos, aderiam à fé em Jesus (Yeshua) como sendo o verdadeiro Messias prometido nas Sagradas Escrituras. Desta forma, assim como aconteceu com Moisés no deserto (Ex. 18.13-26), os Apóstolos depararam-se com a necessidade premente de delegar competência a outros membros da assembléia para auxiliá-los nas suas tarefas ministeriais diárias, devido à impossibilidade de continuarem administrando sozinhos um número tão grande de pessoas.
A partir do capítulo 6 podemos constatar que este problema teve início quando os discípulos conhecidos como helenistas - judeus que viveram por muito tempo fora da Palestina e por isso adotaram certos costumes da cultura grega - reclamavam constantemente contra os judeus autóctones conhecidos como hebreus, alegando que suas viúvas eram esquecidas na distribuição dos víveres que era realizada diariamente (At 6.1). Foi então decidida pelos apóstolos a convocação de uma assembléia geral para que os discípulos escolhessem entre si sete homens aptos para execução desta tarefa, que inicialmente era realizada pelos próprios apóstolos: “sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria” (At 6.3). A partir daí podemos perceber o início da formação do que seria um protótipo da instituição oficialmente administrativa da Igreja Cristã, agora constituída pelos doze apóstolos e seus sete auxiliares.
Alguns teólogos acreditam que, assim como os doze apóstolos representavam o número de tribos de Israel – os hebreus -, os sete escolhidos dentre os helênicos representariam as nações pagãs que existiam em Canaã (At 7.19). Na realidade o que podemos perceber nos capítulos seguintes é que as funções dos setes se assemelhavam em muito às dos apóstolos, uma vez que estes também anunciavam a Palavra (At.8.6), operavam milagres (At 8.4) e batizavam (At 8,38).
É interessante notar que, apesar da função de “diakonía” que esses homens deveriam exercer, Lucas não dá a esses sete eleitos o nome de diáconos. É bom ressaltar que a palavra diakonía tanto pode designar serviço quanto ministério – “ministro de Cristo” (1Cl 1.7). Contudo, o que podemos de fato perceber é que, com o passar dos anos e com a criação e expansão das igrejas ditas gentílicas, o termo diakonos foi utilizado pelo apóstolo Paulo, não só como designação de um ministério (1Co 3.5; Rm 13.4; Cl 1.7; Cl 1.23-25), mas, principalmente, como um cargo na igreja (Fp 1.1; 1Tm 3.8; Rm 16.1; Tm 3,11), assim como Episkopos e Presbyteros que vieram a representar funções hierárquicas dentro do corpo eclesiástico.
Na verdade foi Inácio de Antióquia (século I d.C.) o primeiro autor cristão a classificar os Bispos, Presbíteros e Diáconos como três graus do ministério cristão. Esta hierarquia fixou-se na tradição da Igreja dentro de sua organização e prosseguiu através dos tempos.
Sabemos que no uso correto da palavra todos os membros efetivos da igreja são servos, “diakonos” de Deus. O próprio Jesus apresentou-se como “diakonos” (MT 20.27). É pela diakonía que Jesus se define: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10.45). Ele ensinou os seus discípulos a serem “diakonos” uns dos outros (Mt 20.26). Este é o modelo para a missão dos Seus discípulos e não deveria ser entendida como uma tarefa diferente da evangelização. Todavia, o sentido da essência espiritual dessa palavra foi sendo aos poucos alterado em função do seu emprego restrito e vinculado a tarefas – que também lhe são inerentes segundo as necessidades administrativas das igrejas –, mas que, com o passar dos anos, lhe deu uma conotação de um ofício meramente secular como o de segurança, porteiro, etc.
De sorte que o que pretendemos salientar nesta breve reflexão é a necessidade de se resgatar a essência espiritual da diakonía instituída por Deus através de uma aparente decisão circunstancial tomada pelos apóstolos há cerca de 2.000 anos atrás. Ao nos espelharmos em homens como Estevão e Filipe, podemos compreender mais claramente a importância deste ministério e perceber a necessidade de buscar incessantemente em Cristo a aptidão para o seu exercício, alicerçados no amor de Deus, cheios do Espírito Santo, sendo fieis à Palavra, glorificando, em tudo, o nome do Senhor, visando o estabelecimento do Seu Reino entre nós, e como adendo, sendo: “respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados a muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância, conservando o mistério da fé com a consciência limpa. Também sejam estes primeiramente experimentados; e se mostrarem irrepreensíveis, exerçam o diaconato da mesma sorte, quanto à mulher, e necessário que sejam elas respeitáveis, não maldizentes, temperantes e fiéis em tudo. O diácono seja marido de uma só mulher e governe bem seus filhos e a própria casa. Pois os que desempenham bem o diaconato alcançam intrepidez na fé em Cristo Jesus” (1Tm 3.8-13).

Diácono: VALDEMILSON LIBERATO
Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2009.

A Graça da Lei

A GRAÇA DA LEI
Há poucos dias, fui questionado sobre as bases doutrinárias que sustentam a minha fé em Cristo Jesus. Este fato suscitou-me o desejo de também questionar, não sobre estas bases, mas de como elas estão sendo entendidas e divulgadas ao povo, já que este é o sentido mais próprio de nossa comissão: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado (...)” (Mt 28.19,20).
No Evangelho de João, nos capítulos 14 e 16, Jesus, ao comunicar sobre a necessidade de Sua ausência física no mundo, conforta os discípulos prometendo outro parákletos, - o Espírito da Verdade (Jo 16.13) - para que eles, na Sua falta, não derivassem da sã doutrina. Contudo, sabemos que, apesar de todo o esforço apostólico, os Ensinamentos de Jesus foram gradativamente, no passar dos séculos, contaminados pelos desejos e costumes do homem sem Deus.
O Verbo encarnou, não para trazer uma nova religião, mas com o propósito de restaurar e manter, na pureza dos Ensinamentos, o cumprimento da Lei, cuja essência é o amor de Deus pelo homem. Ele veio para fazer discípulos, restaurando vida ao homem através da obediência e comunhão com Deus.
Por várias vezes Jesus repreendeu os religiosos da Sua época, principalmente os fariseus, pelo rigor e pelo extremismo religioso no cumprimento da Lei, que, pelos seus acréscimos, pervertiam a Palavra do Senhor.
Deus nos revelou os Seus mandamentos para serem aprendidos e colocados em prática na sua íntegra, não devendo, em nada, ser acrescidos ou diminuídos.
Jesus ratifica a Lei, dizendo:

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. (Mt 5.17-20).

Porém, como está descrito no texto, só Jesus, pelo Seu amor, seria capaz de cumprir a Lei integralmente. No cumprimento da Lei, Jesus, por não ter pecado, torna-se o sacrifício perfeito. Através do Seu sangue derramado, todo aquele que nele crê está justificado, remido, e pela fé passa a ter acesso ao Caminho, a Verdade e a Vida. Sendo assim, torna-se evidente que não é a Lei que nos salva da perdição, como alguns legalistas defendem, mas a fé em Cristo, e isto é Graça.
O apóstolo Paulo, em sua epístola aos romanos, explica que todos os homens são pecadores e necessitam da justificação pela fé em Jesus Cristo:

(...), pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. (Rm 3.23-26)

Gloria a Deus por isto! Mas, pergunto eu: se estamos na Graça e é pela fé que somos justificados, a Lei se torna irrelevante? Claro que não! Pois é exatamente pela fé em Cristo que podemos, pela Graça, obedecer aos Ensinamentos de Deus descrito na Lei. Jesus não veio abolir os Mandamentos, mas trazer um nível superior de entendimento da Lei que se expressa no modo de vida daquele que tem fé. Paulo escreve: “Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei” (Rm 3.31).
Sabemos que o “segundo Adão” veio para revivificar o espírito obscurecido pelos desejos da alma, restaurando a identidade do homem perdido na impessoalidade do mundo pelo pecado original, longe do que lhe é mais próprio, ou seja, de Deus (Gn 1.27). No entanto, este homem, mergulhado no desespero da sua existência sem Deus, descrente, refugiou-se na dinâmica do cotidiano e na estagnação da religiosidade, como tentativa, fadada ao fracasso, de encontrar uma identidade que justifique a futilidade de sua vida e o mantenha confortável.
Observamos nas Escrituras que, após a ascensão de Jesus, os combates doutrinários para restaurar a identidade do homem perdido na escolha do pecado continuaram a ser travado pelos seus Apóstolos até a morte de seu último integrante, João, aproximadamente no ano 100 d.C.. Na verdade, a primeira geração dos cristãos, embora formada essencialmente por judeus, já sofria os assédios de doutrinas estranhas aos ensinos de Jesus, principalmente o gnosticismo. Entretanto, foi só após a destruição de Jerusalém, no ano 70, que a igreja perseguida, agora formada na sua maioria por gentios, enfraqueceu suas defesas doutrinárias, não resistindo ao enxerto do paganismo. Aparecem então no seio da igreja as primeiras heresias e seitas, tais como os ebionitas e maniqueus. Com a institucionalização da igreja por Roma, na sua adoção no ano 380 d.C., os costumes e cerimônias do paganismo foram gradativamente infiltrando-se nos cultos de adoração. A doutrina judaica cristã foi substituída pela doutrina romana e as imagens de santos e mártires começaram a aparecer nos templos; as antigas festas pagãs foram aceitas na igreja com nomes diferentes; surge o conceito do purgatório; a ceia do Senhor transforma-se em sacrifício no lugar de uma recordação; a adoração à virgem Maria substitui a adoração das deusas Vênus e Diana; a humildade e santidade da igreja primitiva são substituídas pela arrogância, vaidade e ambição de seus membros, e a fé passa a ser propriedade apenas do intelecto.
Em sua despedida, Paulo alerta a igreja em Éfeso:

Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu guardiões, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue. Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles (At 20.28-30).

O fato é que o que Paulo previa aconteceu. E assim como o homem sem Deus, corrompido pelo fascínio do mundo, a igreja perde a sua identidade. Passa a ter uma doutrina mesclada pelo paganismo e pelo desejo do poder humano. Apesar disto, Deus sempre guardou um remanescente do seu povo, aqueles que permanecem fiéis à Palavra e não dobram seus joelhos à Baal.
Já no final da Idade Média, surgiram vários movimentos reformistas que, em defesa da fé, lutaram bravamente para preservar a sã doutrina. Contudo não conseguiram restaurar a unidade da igreja, mas apenas reformaram os padrões doutrinários do cristianismo romano. Foi assim que no ano de 1517, na Alemanha, o monge e teólogo Martinho Lutero, indignado com o rumo que a igreja tinha tomado, principalmente pela venda de indulgências, afixou na porta da Catedral de Wittenberg noventa e cinco teses como protesto a este absurdo religioso da Igreja de Roma. A partir daí, a igreja que já se tinha dividido pelo grande Cisma do Oriente no século XI em católica e ortodoxa, agora, embasada nos conceitos reformistas, pulveriza-se em várias denominações protestantes, chegando até aos nossos dias.
Segundo a edição de 2001 da World Christian Encyclopedia existe 33.830 denominações cristãs no mundo e este número cresce anualmente numa velocidade impressionante. Mas o que faz com que este fenômeno ocorra? Por que a igreja, em vez de ser unidade, um só corpo, cada vez mais se divide? Podemos supor que a concepção teológica iluminista da liberdade do homem pela Graça sem Lei propiciou a permissividade do homem sem lei, longe da fé pela Graça? Até onde essa permissividade, que divide a igreja, vai parar? Alguns justificam essas divisões como sendo uma estratégia para alcançar todos os níveis de concepções do pensamento humano; um modo de o Evangelho se adaptar, se amoldar às dissensões destes pensamentos para obter sucesso, ser eficaz no ingênuo argumento que alguns chamam de “multiplicidade da unidade”.
Será que este é o mesmo Evangelho que formam discípulos de Cristo e que diz:

(...) Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, a perderá, mas o que perder a sua vida por causa de mim, a encontrará (Mt 16. 24-25).

Jesus orando, rogou ao Pai pelos seus discípulos, dizendo:

Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E, por eles a mim mesmo me santifico para que sejam santificados na verdade. Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra, crerão em mim; a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo creia que tu me enviaste e os amastes como amaste a mim (Jo 17.18-23).

Uma das maiores preocupações do Apóstolo Paulo foi exatamente manter a unidade da igreja, ameaçada pelo partidarismo humano, movido pelo ciúme e contendas: “Quando, pois alguém diz: Eu sou de Paulo, e outro: Eu de Apolo, não é evidente que andais segundo os homens?” (1Co 3.4).

O apóstolo declara:

Ninguém pode por outro fundamento além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo. Contudo, se alguém edifica sobre o fundamento é ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha, manifesta se tornará a obra de cada um; pois o Dia demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; o qual seja a obra de cada um o próprio fogo o provará (1Co 3.11-13).

Certa feita Jesus admoestou os fariseus que, envoltos em sua religiosidade, abandonaram os mandamentos de Deus para se apegar à tradição dos homens: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. Vão é o culto que me prestam, pois o que ensinam, não são mais que preceitos humanos” (Mc 7.6-7).
Que o Senhor, na Sua imensa misericórdia, continue levantando homens para combater o bom combate pela fé, capacitando-os pelo Espírito da Verdade a formar verdadeiros discípulos de Jesus, cumpridores da Lei, restaurando, pelo Amor expresso na Graça, a unidade da igreja em Cristo, para honra e glória do Seu Nome.
Amém.




Valdemilson Liberato Pinto
Rio de Janeiro, 04/10/2009

















Referências bibliográficas:

BÍBILA de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. Paulus, São Paulo, 2002.
HURLBUT, Jesse L. História da Igreja Cristã. Editora Vida, São Paulo 2002.

A Magia do Natal

A magia do Natal
Valdemilson Liberato Pinto.
Nos últimos dias, com a aproximação das comemorações tradicionais de final de ano presente no nosso calendário cultural, podemos observar um crescente “burburinho” e divisão no meio da igreja sobre questões relacionadas à legitimidade comemorativa do Natal e a conseqüente participação dos cristãos nesta data festiva, um simulacro religioso que chamaremos de “a magia do Natal”. Isto que denominaremos de “magia” é uma espécie de “fenômeno do pensamento humano” capaz de dar investidura representativa de valor e poder a algo (o Natal) que, em si mesmo, não possui valor nem poder algum e nada representa. Assim falou o Senhor: “Estais enganados, desconhecendo as Escrituras e o poder de Deus” (Mt 22.29).
Desta forma, opiniões pessoais à parte, o que historicamente constatamos quando nos dividimos é a fragilidade do conhecimento doutrinário e, conseqüentemente, da fé que sustentam grande parte dos discípulos de Cristo.
O apóstolo Paulo, na sua primeira carta dirigida à Igreja em Corinto, alerta aos irmãos, que estavam divididos quanto à doutrina cristã no que versa sobre a ressurreição dos mortos, para se lembrarem do evangelho como lhes tinha ensinado, segundo as Escrituras.
Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que recebestes, no qual permaneceis firmes, pelo qual sois salvos, se o guardais como vo-lo anunciei; doutro modo, tereis acreditado em vão.
Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, (I Co 15. 1-4).
Ao pronunciar por duas vezes nesse texto a expressão “segundo as Escrituras”, Paulo, além de dar ênfase a uma questão fundamental na doutrina cristã, também retira por completo qualquer possibilidade de inserção de opinião pessoal sobre o ensino das Boas Novas, condição essencial, pelo Espírito, através da morte e ressurreição de Jesus Cristo, de acesso a Verdade, o qual deve ser patrimônio de todos aqueles que crêem e pelo qual foi concedida a Graça da salvação. Este é, sem dúvida, um princípio primordial da fé cristã, exemplo de justificada preocupação e necessária intervenção por parte dos “apóstolos de Cristo”, pois, como disse o próprio Paulo: “se Cristo não ressuscitou, ilusória é a nossa fé; ainda estais nos vossos pecados” (I Co 15.17).
Por outro lado, também podemos apreender que a maioria dos conflitos que dividem o “Corpo de Cristo” não compreende questões doutrinárias fundamentais, mas uma tendência histórica de, na ânsia humana de agradar ao Senhor, acrescentar um peso maior aos Seus ensinos, estatutos e mandamentos, e, com isto, pôr um jugo extra aos irmãos, embora muitas vezes, sem perceber, o que fazemos é apenas apascentar a nós mesmos. Lembremo-nos o que nos ensina o livro de Jó, quando numa pseudo propriedade de justos, Jó e seus amigos bramam pelo direito de baluartes da verdade, característica preponderante dos que estão longe do Espírito, mas cheios de si mesmos, e que julgam falar por Deus aquilo que, embora aparentemente correto aos nossos olhos, é exclusividade e autonomia do Espírito Santo.
Assim falou o Senhor:
Quem é esse que obscurece meus desígnios com palavras sem sentido? Cinge-te os rins como herói, interrogar-te-ei e tu me responderás. Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se é que sabes tanto. (Jó 38.2-3).
De outra feita, Jesus nos ensina que, como discípulos seus, devemos ser “luz” e “sal” neste mundo, e, assim sendo, pelo Espírito, no processo de santificação, dar-nos-á Ele o poder de, como luz, sermos nas trevas um farol que sinaliza o caminho seguro, e, como sal, ter o sabor da plenitude de vida em Cristo, aguçando o apetite dos que padecem no des-sabor da ignorância da existência sem Deus. Entretanto, como dito acima, este é um processo sob o domínio exclusivo do Espírito Santo, que possui a justa medida para a intensidade do brilho e o tempero certo para o sabor que deve ser posto, pois, de outra forma, se quisermos sobrepor-nos às nossas limitações, dando uma “ajudinha pessoal” neste processo, certamente “cegaremos” e “salgaremos” a obra do Espírito.
Sendo assim, não é nossa proposta aqui falar sobre as origens e legitimidade comemorativa do Natal, pois esta tarefa já tem sido realizada com muita competência por outros homens de Deus. O que pretendemos é, à luz do Evangelho, não menosprezar o dever santo que nos cabe ao ensino da Palavra, mas ao contrário, levar os irmãos em Cristo a uma reflexão sobre os limites de nossa expressão relativa a tais questões doutrinárias, as quais, como sabemos, estão sob o controle transformador do Espírito, cabendo a nós o testemunho da Verdade e mitigar o excessivo valor atribuído pela religiosidade de alguns a uma data comemorativa que, embora saibamos de origem mundana, tem caráter meramente temporal. Com efeito, o que se verifica é que tal “excesso de zelo” apenas poderá converter este dia da condição alienante, pela ingenuidade e ignorância dos que participam dos seus costumes, ao jugo da opressão, da intolerância religiosa, do juízo pessoal e até da divisão familiar, entre os eleitos de Deus.
Entretanto, malgrado os esforços para evitar o mérito desta questão, já tão exaustivamente discutida e divulgada nos últimos dias, ou seja, sobre a implicação espiritual quanto ao fato do cristão participar ou não das comemorações natalinas, nos vemos impelidos a lançar, pelo menos de forma breve, um olhar para o que nos orienta o amor de Deus, revelado pela Graça do Evangelho de Cristo. Assim procedendo, em primeiro lugar descartemos todo e qualquer tipo de imposição pessoal, desprezo intelectual disfarçado de compaixão e intolerância religiosa, pois sabemos que estes nunca foram princípios do Evangelho do Amor.
O próprio Mestre ensina-nos:

Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e com ele cearei, e ele comigo (Ap. 3.20)
Em segundo lugar, sabemos que esta questão, por ser periférica (psíquica), é temporária e está em continuo processo de transformação pelo conhecimento da Palavra e crescimento espiritual em amor que se realiza individualmente pelo agir do Espírito, segundo a capacidade de cada um. Entretanto, que isto não seja motivo para nos eximir da responsabilidade de esclarecer aos néscios sobre a falácia religiosa deste dia “mágico”.
Por fim, segundo as Escrituras, todos nós precisaremos ser transformados de um corpo psíquico para um corpo espiritual, pois sabemos que, segundo as Escrituras: “a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade” (ICo 15.50).
Sobre questões temporárias e o valor do conhecimento espiritual sem o amor, Paulo adverte aos coríntios:
No tocante às carnes sacrificadas aos ídolos, entende-se que “todos temos ciência”. Mas a ciência incha; é o amor que edifica. Se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber. Mas se alguém ama a Deus, é conhecido por Deus.” (ICo 8. 1-3)
Paulo segue ainda instruindo-nos a respeito do ato de atribuir valor significativo ao “nada”:
(...) sabemos que o “ídolo nada é no mundo” e que não há outro Deus a não ser o Deus único. (ICo 8-4)

Por fim, amados, lembremo-nos do conselho de Paulo:
Deixemos, portanto, de nos julgar uns aos outros: cuidai antes de não colocar tropeço ou escândalo diante de vosso irmão. Eu sei e estou convencido no Senhor Jesus que nada é impuro em si. Alguma coisa só é impura para quem a considera impura. (Rm 14.13-14)
Graça e Paz. Rio, 01 de Dezembro, 2009